"Missa dos Quilombos". Montagem da Cia. Ensaio Aberto, com direção de Luiz Fernando Lobo.

Peças de teatro que marcaram a minha vida

Por Rudinei Borges dos Santos

Algumas peças de teatro são imbuídas de força devastadora, permanecendo vivas em nossa memória, movidas pelo afeto que temos por aquilo que, por razões nem sempre claras, guardamos do grande emaranhado de lembranças que resistem ao tempo. Talvez estes livros, filmes, músicas ou peças de teatro dizem muito sobre nós mesmos de modo que sequer sabemos as razões. São inquietações para o estudo de uma psicologia do espectador. Ou o vestígio daquilo que somos e de como as obras de arte nos marcam a ponto de constituírem um pouco (ou muito) do que somos. Ninguém desmentirá que somos uma ligame de Cem anos de solidão, o romance de Gabriel García Márquez, com Asas do desejo, o filme Wim Wenders, com a Mona Lisa, a pintura de Leonardo da Vinci, mais um tanto da melodia de Like a Rolling Stones, a música do Bob Dylan, e mais um pouco de Psicose 4:48, a peça de Sarah Kane. Mas o que fiz aqui foi reencontrar recordações de montagens teatrais que me deixam com uma saudade grande no coração e no corpo inteiro. São aquelas peças que, a despeito de se firmarem como extraordinárias ou não, resistiram ao tempo, ao nosso tempo memorial e íntimo, por assim dizer. A maior parte delas eu vi na cidade de São Paulo, então não me comprometo em compilar um panorama coerente do teatro por aí, porque é absolutamente pessoal, portanto passível de não agradar o afeto de outros espectadores. Talvez digam de onde eu estava ou o que fazia ou sonhava, porque ressurgem tomadas pelo grande carinho que tenho por elas. São peças de teatro que marcaram a minha vida.


Auto da Paixão e da Alegria

"Auto da Paixão e da Alegria". Texto de Luís Alberto de Abreu em montagem da Fraternal Cia. de Arte e Malas-Artes, com direção de Ednaldo Freire.
“Auto da Paixão e da Alegria”. Texto de Luís Alberto de Abreu em montagem da Fraternal Cia. de Arte e Malas-Artes, com direção de Ednaldo Freire.

Foi a primeira peça de teatro que vi em 2003, logo ao mudar para a cidade de São Paulo, vindo do interior do Pará. Eu tinha 20 ou 21 anos. Vi no Teatro Paulo Eiró, em Santo Amaro. Para mim foi um grande acontecimento a alegria daquela peça encenada pela Fraternal Companhia de Arte e Malas-Artes, grupo que surgiu em 1993, em São Paulo, com o objetivo de pesquisar os elementos da comédia popular brasileira, quer em seus personagens, quer em suas narrativas orais, suas representações teatrais, sua música, suas formas e cores. Também foi o meu primeiro contato com a dramaturgia de Luís Alberto de Abreu, desde sempre um mestre. Eu me recordo com carinho dos atores, da iluminação e do figurino. E, sobretudo, me lembro de como eu ria vendo aquilo tudo.


Missa dos Quilombos

"Missa dos Quilombos". Montagem da Cia. Ensaio Aberto, com direção de Luiz Fernando Lobo.
“Missa dos Quilombos”. Montagem da Cia. Ensaio Aberto, com direção de Luiz Fernando Lobo.

Foi a primeira grande montagem teatral que vi. Digo grande pela proporção do espetáculo, toda a engenharia ali envolvida. Vi no Teatro Alfa em 2004 ou 2005. Era alguma coisa monumental. Eu já conhecia parte dos textos e das músicas, pois vivia naquela época em um seminário católico com abordagem na Teologia da Libertação e forte comprometimento social. Sabia da missa em si. Do primoroso texto de Dom Pedro Casaldáliga e Pedro Tierra. Sabia da música magistral de Milton Nascimento. Mas a encenação teatral da companhia Ensaio Aberto era, de falto, de uma força mesmo arrebatadora. Dado importante: A primeira celebração aconteceu em 22 de novembro de 1981, em frente a Igreja do Carmo, em Recife, local onde a cabeça de Zumbi dos Palmares foi exibida no alto de uma estaca, em 1695.


História de Amor (Últimos Capítulos)

"História de Amor (Últimos Capítulos)". Peça de Jean-Luc Lagarce, encenada pelo Teatro da Vertigem, com direção de Antonio Araújo.
“História de Amor (Últimos Capítulos)”. Peça de Jean-Luc Lagarce, encenada pelo Teatro da Vertigem, com direção de Antonio Araújo.

Aqui também lembro de cada passo do público adentrando o palco do teatro da Galeria Olido, numa noite fria e escura ali no Largo do Paissandu, no centro antigo. O público ficava no palco com os atores do Teatro da Vertigem. Era prazeroso acompanhar o trabalho de Luciana Schwinden, Roberto Audio e Sergio Siviero. Mais ainda: era a descoberta de um texto talvez sem precedentes na dramaturgia contemporânea. Imagino Jean-Luc Lagarce (1957-1995) escrevendo a história daquele encontro de três pessoas que se amaram. As escolhas da encenação de Antonio Araújo me deixavam acho que sem ar – sou conscientemente exagerado.  Talvez tenha sido um dos textos que me fizeram querer escrever peças de teatro, além de poemas. Foi a primeira peça que vi após o meu rompimento com o seminário onde vivi, depois de um ano no noviciado na cidade de Juquiá, no interior de São Paulo. Foi um baque sem precedentes. Lagarce faleceu prematuramente aos 38 anos de idade. Deixou, contudo uma obra bastante prolífica e original.


Primeiro amor 

O ator Marat Descartes.
O ator Marat Descartes.

Ainda recordo o escuro da pequena sala do Espaço da Cia. Os Satyros, na Praça Roosevelt, no centro de São Paulo. Era como viver algo precioso e único. E realmente a atuação de Marat Descartes era preciosa e única. É das composições de um ator que mais gosto de lembrar. Algo de engenhosidade e genialidade que um jovem ator alcança poucas vezes. A peça alimentou em mim muito do meu amor por Samuel Beckett. A adaptação para o teatro do breve romance foi dirigida por Georgette Fadel. Vi em 2007. A Praça Roosevelt ainda era um lugar jogado às traças.


O caminho para Meca

“O caminho para Meca”. Peça de Athol Fugard, com direção de Yara de Novaes.
“O caminho para Meca”. Peça de Athol Fugard, com direção de Yara de Novaes.

Como esquecer a interpretação vigorosa da atriz Cleyde Yáconis para o texto do dramaturgo sul-africano Athol Fugard? A memória não deixa que Yáconis se perca nunca. Suponho que tenha sido a última peça da grande atriz. A peça contou com o belo trabalho de Cacá Amaral e Lúcia Romano, além da sensível direção de Yara de Novaes. O texto foi inspirado na vida longeva da artista Helen Elizabeth Martins (1897-1976). Assisti no teatro do Sesc Ipiranga quando eu morava no bairro do grito. Creio que em 2008.


A Última Gravação De Krapp e Ato Sem Palavras 1

“A Última Gravação De Krapp e Ato Sem Palavras 1”. Peças de Samuel Beckett, com direção de Isabel Cavalcanti.
“A Última Gravação De Krapp e Ato Sem Palavras 1”. Peças de Samuel Beckett, com direção de Isabel Cavalcanti.

Foi preciso atravessar a cidade para chegar até o teatro do Sesc Santana, em São Paulo. Só assim vi Sergio Britto em cena. Talvez a sua última peça. O grande ator estava lá rezando aqueles murmúrios da obra de Samuel Beckett (1906-1989). Aquilo era forte e belo: um ator sozinho com aquela multidão de fantasmas. Sérgio era econômico e grandioso. Penso que até hoje me sinto envolvido com a iluminação sinuosa de A Última Gravação de Krapp e depois a atmosfera ensolarada de Ato Sem Palavras 1. A direção foi de Isabel Cavalcanti. Vi a peça em 2009.


Agreste

“Agreste”. Peça de Newton Moreno em montagem da Cia. Razões Inversas, com direção de Marcio Aurelio.
“Agreste”. Peça de Newton Moreno em montagem da Cia. Razões Inversas, com direção de Marcio Aurelio.

É difícil falar de Agreste. A montagem da Cia. Razões Inversas faz do texto de Newton Moreno a suma de um teatro que sempre quis seguir – movido pela narrativa e a presença vibrante dos atores. Um teatro poético e violento. Ano passado, numa aula de dramaturgia, questionaram a viabilidade do texto para a nova década naquilo que diz respeito às mulheres. Confesso que não soube responder. O final daquela peça com o incêndio da pequena casa onde vivia um casal homoafetivo, em algum lugar dos confins do nordeste, é ainda estarrecedor para mim. Desde então, venho acompanhando a dramaturgia de Moreno com muito entusiasmo. Devo ter vista a peça em algum lugar da Rua Consolação em 2010 talvez. Não lembro ao certo. Porém não consigo esquecer um gesto da encenação de Marcio Aurelio. Das mais vigorosas que vi.


Dentro é lugar longe

"Dentro é lugar longe". Peça de Rudinei Borges dos Santos em encenação da Zózima Trupe, com direção de Anderson Maurício.
“Dentro é lugar longe”. Peça de Rudinei Borges dos Santos em encenação da Zózima Trupe, com direção de Anderson Maurício.

São inesgotáveis as lembranças desta peça que teve estreia no dia 1 de maio de 2013 em um ônibus no Terminal Parque Dom Pedro II, em São Paulo. Foi a primeira peça com texto assinado por mim e montada por um grupo de teatro. A Zózima Trupe, dirigida por Anderson Maurício, compôs um trabalho de fôlego, atravessando todo o centro antigo até o bairro da Luz em um ônibus em movimento. A peça é uma composição poética que parte de narrativas biográficas para ir dentro da gente, da infância e da perda. Lembro como um momento de muita alegria, pois uma peça que escrevi estreava e seguia pelos confins da cidade. Era o início da minha trajetória como dramaturgo. Lembro-me muito do dia que o crítico Sebastião Milaré (1945-2014) foi assistir. Eu já morava no centro. Fomos o Milaré e eu caminhando pelo Viaduto do Chá. Recordo-me das palavras dele e de como me incentivava a continuar escrevendo. Também era muito comovente como as pessoas choravam vendo e ouvindo aquelas histórias. Ao final das apresentações, eu sentia que realmente havíamos, todos nós, feito uma travessia pelo afeto e também pela dor. É impossível esquecer.