Quando parte um ator ou para Flávio Migliaccio

Talvez eu pensasse no teu último instante.
Na voz do teu rosto naquele momento de ranhura e coragem.
Talvez eu quisesse guardar o teu rosto
ou os teus apoucados cabelos esvoaçantes
só para ter de ti o último minuto.
Talvez eu quisesse a tua última palavra
– a anunciação do teu último verbo.
Ou talvez quisesse a rouquidão do teu balbucio franzino,
o lugar do teu último suspiro,
a matéria cálida do teu último suspiro.
Cá comigo, no meu canto sozinho
– porque agora somos todos sozinhos –,
eu quisesse saber – por curiosidade e compaixão –
em quem pensavas no teu último instante.
Era no teu pai, meu amigo?
Era na tua mãe?
Era nos teus dezesseis irmãos?
Era em mim – o menino que nunca viste?
Ou não pensavas em ninguém?
Porque talvez, meu amigo, seja tão duro, que é impossível pensar.
Resta só o corpo que pulsa, meu amigo.
A aorta ou o coração bombeando sangue para todo o sempre.
Fotografias do que fomos.
As canções que guardamos dentro de nós.
O vozeio do filho ou do nosso grande amor.
As mãos suadas sobre o rosto.
O corpo trêmulo, mas em pé.
Resta o vento, meu amigo, o vento frio da Serra do Sambê.
As ruas tristes do Rio de Janeiro.
As esquinas tristes do Brasil.
Becos sem saída.
O túnel dentro da colina.
Os automóveis nas alamedas.
A vida, meu amigo. Resta a vida.
E viver é tão duro, tão efêmero, tão doído.
Tudo é tão doído, meu caro.
A velhice. A juventude. O abraço falso das cidades encerradas.
Os governantes matadores do alto dos palácios.
Que porta que abriram, mas não fechamos?
A porta do medo? A porta da escureza?
Os “podres poderes” reinam, meu caro.
“Os assassinos estão livres”.
E nós é que morremos.
Porque é melhor ir do que voltar.
É melhor partir, meu amigo.
E escrever só uns rascunhos da lonjura imensa que queríamos dizer de verdade. Porque só conseguimos escrever só duas linhas malfadas,
aos 37 ou aos 85 anos,
quando a humanidade inteira não vale uma vogal, uma consoante.
E nós, nós mesmos, meu caro, o que valemos?
Os impostos que pagamos?
Os sonhos que perdemos?
Os amores que se foram?
Os cabelos brancos?
As rugas na cara?
O grito abafado?
Não valemos nada, meu amigo.
E nada é tão pouco.
Um cisco. Um trisco. Um fiapo.
O que fica disso tudo?
O palco? A coxia?
Os milhões de olhos que nos assistiram um dia?
Um dia todo não vale o teu último instante.
“É melhor morrer do que perder a vida”.

Rudinei Borges dos Santos
São Paulo, SP. Madrugada do dia 5 de maio 2020.