Paisagens (in)visíveis; armas (in)visíveis: o imaginário e o imagético em Transamazônica

Por Bruno Machado

E aquele ou aquela que é fotografado é o alvo, o referente, espécie de pequeno simulacro, de eídolon emitido pelo objeto, que de bom grado eu chamaria de Spectrum da Fotografia, porque essa palavra mantém, através da sua raiz, uma relação com o “espetáculo” e a ele acrescenta uma coisa um pouco terrível que há em toda fotografia: o retorno do morto.(Roland Barthes in. “A Câmara Clara”).

IMG_7520
O ator Leandro Lago em Transamazônica. Foto por Gal Oppido.

O teatro sempre se estabelece na dimensão do possível. Tal como os atores Leandro Lago e Geraldo Fernandes, que se despem de camadas figurinos entre as cenas que compõem “Transamazônica”, o texto para o teatro se desfolha entre estratos de possibilidades, de sentidos e de leituras.

A dramaturgia de Rudinei Borges dos Santos se situa na dimensão do possível ainda no urdimento, antes mesmo de chegar ao palco, à voz dos atores ou à fruição do público. “‘Transamazônica’ é uma peça interrompida”, escreve o dramaturgo no verso do programa do espetáculo. De fato, ante às notícias da violência que imperava na região Norte, o autor desistiu da viagem que faria ao interior do Pará, em 2018. “Assim, entre percalços, o que apresento em breves escritos são fragmentos desse impedimento, fractais do que poderia ser uma obra cênica, cicatrizes que restam nos corpos de indígenas e colonos que até hoje habitam as margens da história e de uma rodovia esquecida no coração da Amazônia. ”

A obra resultante é, assim, um conjunto de instantâneos; fotografias possíveis que o autor-narrador nos e se apresenta. Porque a “Transamazônica” – o faraônico fracasso que rasgou o interior nordestino brasileiro, rumo à fronteira peruana – é também e somente a possível, inescapavelmente transpassada pelos caminhos do afeto e da memória: paraense de Itaituba, Rudinei Borges dos Santos traz ao público a Transamazônica que tem dentro de si, num percurso imagético fotojornalístico, mas também autoficcional.

No processo de autonarração, o percurso dramatúrgico que se estabelece torna-se duplo e dúbio – confundem-se caminho e viajante: é o dramaturgo que percorre a estrada da memória, ou é a memória do dramaturgo que, por sua vez, como asfalto, se sedimenta no trajeto transamazônico?

Se esta ficção é também uma ficção do e sobre o autor, ele está devidamente inserido na paisagem que investe contra o para-brisa, junto dos demais personagens: pistoleiros, meninas indígenas, curandeiras, colonos, ele mesmo e a memória da mãe.

Como instantâneos, tais figuras fantasmagóricas, habitantes da lembrança, estão decalcados na paisagem, invisível, mas materializada como quadro em movimento na voz e no corpo dos atores. No banco do passageiro, o espectador é atravessado por placas de sinalização, destroços (“de si e do tempo”), cruzes, descampados, aldeias, gente e bicho, que sangram de um mesmo vermelho.

O olhar do narrador-dramaturgo sobre tais cenas, paisagens e personagens – unos, pois contidos uns nos outros, e aqui, inclui-se também narrador-dramaturgo –, opera sob o tempo e a lógica da memória, quando vista da janela: ora detém-se sobre um detalhe presente no quadro; ora o dispensa a favor do todo, numa dinâmica em que contínuo e lacunar suplantam-se até o fim do trajeto: blecaute.

Dinâmica similar opera no processo de sugestão e estabelecimento de relações, como se os retratos que compõem a dramaturgia povoassem uma mesma grande tela, compartilhassem de uma mesma natureza comum, uma herança, uma árvore genealógica. Quando analisado, o texto exibe por moldura a violência, seja como arma de justiça, oficial e clandestina – policiais e matadores de aluguel – ou de injustiça: a colonização, a dizimação da floresta, das populações e cultura indígenas. Em cena, do teto, verte um pano vermelho: a estrada que liga nada a lugar algum, feita de, e que leva consigo somente sangue e silêncio – natureza comum, herança, árvore genealógica.

_C4A9028
Os atores Leandro Lago e Geraldo Fernandes são os narradores de Transamazônica, obra cênica com dramaturgia e direção assinadas por Rudinei Borges dos Santos. Foto por Gal Oppido. 

Arma branca, sangue vermelho

No exercício teatral da possibilidade, o diretor Rudinei Borges dos Santos, assim como quando nas funções de narrador-dramaturgo, opera pelo processo de visibilizar e invisibilizar.

Fortemente sedimentada em texto e atuação, a montagem encontra potência imagética, paradoxalmente, na economia das imagens. Pouco é mostrado ao espectador: os ângulos da câmera são fechados; a costura entre os fotogramas, fragmentária. Assim, a violência que impera, como caminho e obstáculo – artéria e coágulo –, surge em cena não pelo que é, mas pelo que produz: ausência.

Já na primeira cena de “Transamazônica”, uma criança e um pistoleiro conversam sobre armas de fogo. O menino sonha espingardas e metralhadoras ao que o matador lhe informa estar de posse de um revólver. A pistola contudo, nunca se materializa, seja na dramaturgia, seja no palco – permanece como sugestão, símbolo, empunhado pelos personagens: o diálogo termina com a rubrica “[Tiros ao longe.]”.

Ao longo do texto, outras armas de fogo aparecem. A única que se realiza em cena é um facão, utilizado por uma colona na cena 3, “Mucura”. Aqui, a arma branca é tão palpável e concreta quanto a sua finalidade: matar animais para dar de comer aos filhos. É também uma arma empunhada por uma figura feminina, como se o dramaturgo enxergasse na mulher anônima a dignidade de uma Diana que, enquanto limpa a presa abatida, chora por Cristo crucificado, agonizando de morte e de sede.

A violência, por fim, parece não cabe mais nas armas ou naqueles que puxam o gatilho. Transborda como cultura roubada, sequestrada, estuprada, espoliada e vendida como produto – os versos de Índia, entoados em uníssono por um par de pistoleiros bêbados e trôpegos, óculos escuros escondendo os rostos, às margens da BR-230.

A violência é a própria estrada: o rasgo, a paisagem desfigurada, onde jazem os destroços “de si e do tempo”. Memória e história irrompem, uma ferida de cinco mil quilômetros de extensão, ainda por cicatrizar a dor dos torturados e mortos pela violência, não mais clandestina ou oficial, mas apenas violência.

Uma mão de criança empunha uma arma de fogo invisível – um instantâneo. Um exame histórico-balístico indicaria que o projétil se lança do passado, a Transamazônica, fóssil vivo da ditadura brasileira, e investe contra outro cano de revólver invisível, desenhado no ar pelos dedos de outra mão infantil. Crianças que brincam de pistoleiro, índio e caubói, junto aos destroços de uma rodovia. Junto às ruínas da democracia.

+

A imagem pode conter: Bruno Machado, listras e close-up

Bruno Machado é jornalista e crítico de teatro. Formado pela ECA-USP, em dez anos de carreira atuou como repórter e colaborador de grandes veículos e empresas de comunicação, como Diário de S. Paulo, Editora Abril e Rede Globo. Sua produção lhe rendeu reconhecimentos da Associação Brasileira de Psiquiatria (2014), da Society for News Design (2015) e do Prêmio Abril de Jornalismo (2015). Como crítico, já produziu resenhas e análises sobre cinema e teatro para as revistas Brasileiros (2012) e Veja São Paulo (2017). Atualmente, assina crítica de teatro para o caderno Ilustrada, da Folha de S. Paulo.