Transamazônica – entre fragmentos de um país rasgado pelo progresso

Por Maria Luísa Barsanelli

Cria de uma política supostamente progressista do regime militar brasileiro, a rodovia Transamazônica foi um projeto tão grande na ambição quanto no fracasso. Depois de mais de 40 anos desde o inícios das obras, a via, que ligaria a capital paraibana João Pessoa ao Peru, segue inacabada. Causou desmatamentos e problemas sociais desmedidos. Rachou a floresta Amazônica.

Por essas cicatrizes é que transita o dramaturgo e diretor Rudinei Borges dos Santos em seu Transamazônica. Nascido em Itaituba, Pará, numa família de colonos migrantes da rodovia, o encenador conhece bem os meandros da região. Não à toa, cria um espetáculo fragmentado, buscando as fissuras dessa via nunca concluída.

Ao dividir o todo em histórias particulares, cada qual sob pontos de vista de diferentes pessoas atingidas pelas mudanças, dá conta da magnitude do impacto daquelas obras e também aproxima o espectador dos dramas particulares. Aqueles dos colonos deslocados para trabalhar na beira da estrada, da população indígena que viu sua terra invadida, dos pistoleiros que veem a violência embutida em seu cotidiano, a crueldade banalizada.

O descaso está na boca de todos. Surge em cena expresso por falas como a do personagem que diz: “Você sabe como Deus criou o mundo? Deus não criou o mundo, o mundo se criou sozinho”. Ou outro que, logo no prólogo, descreve “a gente derruída” e a “árvore derruída”, um bom resumo para o que viria a sofrer a população e a natureza locais.

Afinal, aquele “sonho” de progresso, principal eixo do Plano Nacional de Integração, levou “homens sem terra para uma terra sem homens”, como definiu à época o então presidente, general Emílio Garrastazu Médici. Mas a construção da BR-230 (nome oficial da via) não foi mais que uma infeliz solução para o problema da distribuição de terras. Em vez de diminuir a concentração de ricos proprietários, o governo decidiu mudar os trabalhadores rurais, assentando-os ao longo da estrada.

O texto de Rudinei carrega o público como um colono deslocado ou mesmo um viajante que transita por aquele rasgo de estrada que corta a floresta, acompanhamos a história como se víssemos passar no mapa toda aquela distância. Cada cena é introduzida por uma rubrica, falada pelo elenco, que descreve o ambiente em que se passa aquele trecho e em qual quilometragem, ou seja, em qual altura dos 4.260 km Transamazônica ele se encontra.

O ator Leandro Lago em Transamazônica, peça com direção e dramaturgia de Rudinei Borges dos Santos. Foto por Gal Oppido.
O ator Leandro Lago em Transamazônica, peça com direção e dramaturgia de Rudinei Borges dos Santos. Foto por Gal Oppido.

Como se percorrêssemos o caminho no crepúsculo, somos introduzidos às primeiras cenas sob uma luz difusa, que vai aos poucos revelando aqueles seres sem nome e sem rosto. Os dois atores (Leandro Lago e Geraldo Fernandes) alternam-se entre narradores e personagens. Falam um para o outro sem se entreolhar, como se buscassem alguma ligação com aquela terra sem homens. Por vezes também repetem falas, ecoam vozes, emulando os fantasmas da região. Tudo soa interrompido, eventualmente abrupto, como o fim banal de muitas daquelas vidas.

Interessante pensar que Transamazônica vem também de um projeto interrompido. Rudinei ensejava um trabalho sobre a missionária Dorothy Mae Stang, que lutou pela preservação ambiental e por uma divisão de terra justa na Amazônia. O encenador chegou a conviver com a americana, assassinada em 2005, no município paraense de Anapu, a mando do fazendeiro Vitalmiro Bastos de Moura, desgostoso da luta de Dorothy.

O impedimento e as cicatrizes surgem, assim, impregnados na narrativa de Transamazônica. A violência, do mesmo modo, está a todo tempo imposta. Um facão é colocado à frente do espaço cênico, evidenciado por uma luz recortada e com a ponta virada para a plateia, lembrando a todo o tempo o espectador da crueldade que orbita ali.

A tinta vermelha que cobre a região dos olhos dos intérpretes surge como insígnia indígena, mas logo é espalhada pelo rosto, esfregada pelas mãos, manchado como que por sangue. A cor também vai sendo evidenciada ao fundo do palco, por um retângulo escarlate que rasga de alto a baixo a parede, como se abrisse ali uma fenda, uma cicatriz, tal qual a criada pela BR-230.

Mas Rudinei não carrega a encenação com crueza. Tudo é feito num tom lírico, poético, como uma tentativa de renascimento dentro de tempos duros – algo semelhante ao que o encenador desenhou em Medea Mina Jeje, relato trágico da escravidão brasileira, mesclado à não menos trágica mitologia grega, mas sempre envolta de uma poesia que salta aos olhos.

Os atores Geraldo Fernandes e Leandro Lago em cena da peça Transamazônica, com dramaturgia e direção de Rudinei Borges dos Santos. Foto por Gal Oppido.
Os atores Geraldo Fernandes e Leandro Lago em cena da peça Transamazônica, com dramaturgia e direção de Rudinei Borges dos Santos. Foto por Gal Oppido.

Aqui, a lírica está na iluminação difusa e quase fantasmagórica de Decio Filho, nos cenários e nos figurinos de Telumi Hellen, que trazem os tons de terra daquele asfalto inacabado, daquela floresta ressecada, e também camadas de renda delicada, que imprimem versatilidade para os distintos personagens e retratam o apreço de um povo que por vezes tinha nos poucos pertences a memória de sua herança, da família.

Muito desse mérito também vem da musicalidade trazida em cena por Juh Vieira. Envolto de percussão e cordas, transita por ambientações soturnas, modas típicas, ritmos alegres e mesmo canções bregas – há um tanto de humor, por exemplo, numa cena entre dois pistoleiros, que acaba num karaokê de “Índia”, dos paraguaios José Asunción Flores e Manuel Ortiz Guerrero. A presença de Juh entra e deixa a cena com fluidez, cosendo e ritmando as falas dos dois atores.

Os sete capítulos de Transamazônica (dentre eles, um prólogo e um epílogo) ecoam as vozes silenciadas, rasgadas pela BR-230, que surgem em cena tanto individualmente como num quadro amplo de toda a região.

Não à toa, Rudinei cria ao final um registro imagético daquela realidade, encerra o espetáculo descrevendo a fotografia de um funeral: “Era comum que aquela gente fosse fotografada entre caixões. Era comum que aquela gente vestida com camiseta pobre, sem cerimônia, se aglomerasse na carroceira dum caminhão e viajasse por quilômetros. Era comum que se acidentasse. Era comum que aquela gente morresse”.

Por fim, um retrato da estrada do progresso que, em vez de interligar, alimentar, enriquecer, rasgou o país a navalha.

+

Malu Barsanelli

Maria Luísa Barsanelli é jornalista especializada em teatro. Foi editora-assistente e repórter de artes cênicas do caderno Ilustrada, da Folha. Integra o júri do Prêmio Shell de Teatro de São Paulo.